Sobre o Vazio
Sobre o Vazio
O vazio tem o valor e a semelhança do pleno.
Um meio de obter é não procurar.
Um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que
o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu mistério.
(Clarice Lispector)
Marlene Stamm, ao reunir várias instalações de séries para compor Sobre o Vazio, expõe toda a força e delicadeza de seu trabalho apontando para a importância dos detalhes, para o valor dos pequenos fragmentos salvos do esquecimento e a potência da passagem do tempo. São centenas de aquarelas e desenhos que dialogam com memória e resistência, convidando o olhar a se perder em minúcias.
Na série Vazio, Marlene apresenta 74 aquarelas com envelopes sem cartas, sem destinatário ou remetente. Um vazio repleto de questionamentos que atiçam a curiosidade na procura dos elementos simples de uma narrativa com significados e particularidades que os tornam únicos. Cada aquarela é o registro de um objeto, quase sempre descartável, expondo a materialidade para que nada se perca, “nem os traços, nem as circunstâncias de sua existência”, diz a artista, sempre atenta ao esforço que as coisas mais simples fazem para perdurar.
Em 6 horas de Luz temos dois elementos registrados com precisão em 530 aquarelas sobre papel: o tempo e o que resta de um palito de fósforo quando a chama se apaga. São apenas segundos e alguns décimos de claridade, que somados perfazem 6 horas de luz. Para entender a claridade é preciso imaginar a chama. É preciso perceber no fósforo retorcido e queimado a memória da luz.
Maria não mora mais aqui, série composta por diversas obras, é a narrativa da ausência, daquilo que restou após a partida, das marcas deixadas. O que permanece tem voz e conta uma história de sucessos e superações, de soluções encontradas e necessidades. Cada prego enfiado na parede teve uma intenção, cumpriu um papel. Cada fio exposto é testemunha de uma emergência, assim como a tinta e o emboço danificados nas paredes. Maria não mora mais aqui, mas deixou sinais de sua passagem, das suas ações. Sua presença ficou impregnada no espaço, registrando momentos de uma vida que podemos apenas suspeitar, mas que insiste em permanecer. Em cada obra transparece a nostalgia da ausência. As aquarelas hiper-realistas surpreendem pela precisão, pela representação fiel.
Marlene Stamm tem em sua poética a passagem implacável do tempo e o que ele modifica. Interessa à artista a memória das coisas, os resíduos, os pequenos detalhes que explora em suas obras com maestria. Registrar para que nada, das simplicidades do cotidiano, se perca no esquecimento. O olhar capta, mas é sua sensibilidade e arte que transformam.
A luz, outro elemento presente nas obras de Stamm, aparece em diversas formas, porém sempre representando o fluxo temporal e energético. As horas das chamas cronometradas nos fósforos riscados, a luz do dia registrada em Da aurora ao crepúsculo, os pontos de energia e fios na casa onde Maria não mora mais e o emaranhado de ligações, possivelmente clandestinas, em Gato, vão muito além de uma mera representação. São conexões, que interagindo, ligam seres e coisas. As interrupções existem, as descontinuidades acontecem ao longo das trajetórias. Entretanto “a obra convida o espectador a contemplar a força vital que é ao mesmo tempo frágil e poderosa, contínua e suscetível a interrupções como as próprias relações que simboliza”, afirma a artista.
Quando a arte emociona a ponto de nos levar para além do que o olhar percebe, procurando respostas e suscitando questionamentos, está cumprindo seu papel.
Isabel Portella