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Uma casa toda sua

Uma casa toda sua

 

Ninguém sabe quantas rebeliões fermentam no peito das pessoas.
Virginia Woolf

Eva Klabin, personalidade fascinante, determinada e de grande sensibilidade, ousou segurar o tempo em suas mãos, construindo um abrigo seguro para as preciosidades que adquiriu ao longo da vida. Queria não apenas juntar obras de arte, mas conservá-las ao alcance dos olhos, no lugar onde vivia. Na casa da Lagoa, Eva Klabin reuniu peças magníficas, vindas de civilizações e épocas diversas: “sou esteta e tudo que seja artístico tem interesse para mim”, diz a colecionadora apaixonada, que transformou sua casa em museu, abrindo portas e janelas para a sociedade. 


Gaston Bachelard lembra que “a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”. Todos os aposentos têm valores oníricos condizentes, portanto podemos afirmar que a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos. É corpo e é alma. É o lugar para onde levamos nossos deuses domésticos. E Eva Klabin bem sabia de todas essas verdades. Ao mesmo tempo que vivia intensamente, também precisava do seu quarto, um pedaço de mundo onde existisse na sua indevassável individualidade. Com esse pensamento, ela estaria se aproximando de questões trazidas por Virginia Woolf em Um quarto só seu, livro publicado em 1929, em que analisa as condições sociais das mulheres. Nessa época, Eva Klabin tinha 25 anos, era rica, viajava e tinha acesso ao que havia de melhor no mundo. Concomitantemente Woolf indagava, em palestras a universitários, sobre os efeitos da riqueza na mente humana. Indignava-se ao pesquisar sobre a figura feminina e encontrar sátira, reprovação e raiva. 


Como falar da produção artística de mulheres “se a sociedade da época as proibia de pensar, de estudar, de frequentar bibliotecas e comer o mesmo que os homens?”, destaca Socorro Acioli. Como lidar com a imagem de inferioridade mental, moral e física do sexo feminino divulgada, até então, pelos letrados? Durante séculos as mulheres serviram de espelho, “possuindo o poder mágico e delicioso de refletir o homem de um tamanho duas vezes maior que o natural”. Woolf salienta que a visão no espelho é de suprema importância uma vez que ela energiza a vitalidade e estimula o sistema nervoso. A imagem de Eva Klabin, refletida em seus valiosos espelhos, era de confiança e determinação que transparece do pensamento lúcido e transgressor. E é essa a imagem que as mulheres continuam construindo, sob duras penas, ao longo do século XXI. 


Catorze artistas, mulheres com discursos e poéticas bastante diversos, foram convidadas a participar da mostra UMA CASA TODA SUA, e trouxeram propostas instigantes de interferências no espaço da Casa Museu Eva Klabin. Um século se passou desde que Virginia Woolf colocou em questão a liberdade intelectual das mulheres como dependente de coisas materiais. A produção artística não é incorpórea ou espiritual e está, sim, relacionada a questões materiais como saúde, dinheiro e casa para morar. Embora o diálogo continue e as perguntas se sucedam, o cenário mudou. O feminino ganhou voz e essa voz consegue ser ouvida. A invisibilidade perdeu terreno pois são muitas as lutadoras que levantam bandeiras e incendeiam debates. Mas terá o mundo contemporâneo visto nascer uma sociedade justa e equilibrada entre a condição masculina e a feminina? 


O legado de Eva e Virginia permanece no fazer de cada artista. Transcende o tempo e enaltece valores, convidando a reflexões sobre as diferentes narrativas. 
Na fachada frontal da casa-museu o visitante é recebido por Eva Klabin em diálogo com Virginia Woolf. Talvez Eva esteja contando sobre o conteúdo da casa e como isso traduz o sentido de sua vida. É provável que falem sobre autonomia financeira, moradia e que Virginia se surpreenda com a beleza do espaço e da coleção ali reunida. Nenhuma delas precisou pedir licença para seguir seu caminho e ambas guardam com zelo a chave de seus próprios quartos. 


Às vozes dessas duas figuras emblemáticas irão se juntar outras, contemporâneas, com novas demandas, desejos e inquietudes. Ao ocupar os espaços da Casa, falam da importância de reverenciar as ancestralidades, de memórias afetivas, do sagrado que habita o improvável. Tecer, bordar, costurar, práticas fortemente ligadas ao universo feminino, invocam encantarias, remetem às colmeias, ressignificando processos e gestos. Fotos e livros, inseridos em diversos ambientes, alertam para o possível esvaziamento das informações e o consequente esquecimento. Que a magia da observação das imagens ocupe o olhar dos que passarem por lá. 


O espelho que reflete a imagem engrandecida do homem, importante ponto no discurso de Woolf, despertou para temas relevantes. Devolver à mulher sua real dimensão, sobrepor imagens num ritual de transferência de poder, incluir o espectador na obra foram algumas possibilidades exploradas com sucesso. 


Em cada ambiente as artistas encontraram objetos que remetem a questões importantes e dialogam com suas poéticas. Vestidos, tapeçarias, pinturas e bibelôs inspiraram obras que contam de uma época de abundância e de mitos associados ao patriarcado, ao silenciamento e aos abusos. Perfumes convidam os visitantes a evocar a aura noturna de Eva Klabin, suas preferências e hábitos, buscando enriquecer a mostra com uma experiência sensorial.


Mulheres falando de mulheres, de vulnerabilidades, de controles e descontroles, de sangue, suor, leite e lágrimas. Expondo o corpo que catalisa a violência cotidiana criando um espaço de tensão, um lugar de repelência que trabalha com o medo do corte, com a ameaça da lesão física. 


O corpo é morada, é teto e é quarto, um lugar só seu de equilíbrio e de força, de cuidados e reconhecimento. No encontro da arte com tantos desejos e conquistas, celebremos a figura de mulheres que ousaram transgredir oferecendo à vida o que têm de mais íntimo e sagrado.

Isabel Sanson Portella

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