Invisíveis
Mnemis: Dogma da visibilidade silenciosa
27 Aforismos
1. A memória é vadia, errando sobre camadas de vontades e receios.
2. A passagem das horas vingou-se de Fernando Pessoas.
3. A compilação dos dias de vida alonga-se em linhas espiraladas.
4. Há dias que são dias sem recuo nem avanço.
5. O contrário da pressa é o tempo alimentando-se de sopro.
6. O sopro – daimón – trabalha no intervalo que a alma dá ao corpo para o domar.
7. Existem concentrações de segundos, perdidos ou dispersos, que convergem na densidade encarnada dos tecidos.
8. O tempo queima-se enredando-se na dúvida acerca da sua existência, pois tanto se questiona a sua invisibilidade.
9. A invisibilidade sabe-se que é incorpórea ou acredita-se seja tão espessa que a mão não agarra.
10. A espessura da pele constitui-se de pensamentos acumulados, sobre os quais se esgadanha a sensibilidade excessiva e o rigor das palavras esfumadas sobre o papel.
11. A precisão do desenho quando impregnado de um teor representativo que está ao serviço do conceito enxuto é plenitude assombrosa
Continua na próxima tela
Mnemis: Dogma da visibilidade silenciosa
27 Aforismos
12. O desenho, evidenciou Paul Valéry acerca de Degas, é dança. Então, desenho é movimento silencioso de corpo agarrado na sua própria mão.
13. O corpo /alma / ideia que segura a matéria translúcida, para se cumprir no espaço, é performático.
14. Na luz que configura a silhueta, tornando o corpo portador de densidade quase imaterializada, a reverberação do chão é a terra contemporânea.
15. O solo significa chão e palco, sendo simultaneamente estado de estar sozinho, toda a atenção convergindo para esse “eu” que é um “si mesmo”.
16. Nunca se ignore o desafio da gravidade. Ela é colorida e intangível, portanto pode soçobrar a todo tempo, apropriando-se das mais diversas formas.
17. Torne-se séria e espessa a delicadeza de fruir a beleza dos tecidos voláteis que sussurram estórias aos fósforos, enquanto estes se extinguem no crepúsculo.
18. O silêncio de John Cage grita à velatura dos tecidos: calem-se.
Continua na próxima tela
Mnemis: Dogma da visibilidade silenciosa
27 Aforismos
19. O silêncio dos monocromáticos, que acolhem lembranças (em estado de sombra), agride a fumaça subtil que sobe para o teto da sala em aventura amorosa.
20. Ainda o silêncio da condição involuntária, para recordar o desenvolvimento da mão dobrada (de novo a “dobra” por Gilles Deleuze) que garante a presença do que se esvai.
21. As sombras escolhem as suas presas para enraivecidas as afugentarem – de tal modo – que se dissipam na chama a fugir pelo papel afora.
22. A frugalidade do espanto repete-se no ato em que a chama atiça o tempo.
23. Cronos adivinha-se vencido e, contrariado, apaga com o sangue os contornos dos lugares de descanso.
24. Ouviu-se o relato de fios que – no calor do outono – saíram da parede e reentraram para se agarrarem às tomadas de eletricidade. Sabe-se que, afinal, eram desenhados.
25. As tomadas residem em paredes altas. Preferem as planuras, rebaixadas a procurar o seu reflexo nas tábuas do soalho de pinho.
26. Iludidas pela sua presença de semelhança, ralham com os fios postiços. se querem que se afirmam quanto precária e a noção de dia.
27. Pela janela, vêem-se escombros e palmeiras. As intervenções das artistas têm vista e paisagem para olhar. Subtileza.
Mnemis: Dogma da visibilidade silenciosa
11 inomináveis frases em fuga
1. As linhas corroem a alma desprovida de defesas contra ideários estéticos comprometidos.
2. Os volumes emagrecem numa vertigem quase barroco onde a talha dourada é grafite e sombra.
3. Memórias tranquilas mergulham no estuque refletindo pessoas invisíveis que o espaço há-de acolher. Convivem com génios invisíveis que – de modo insuspeito – aguardam os mortais na hora do chá.
4. O amor passeante visita os mundos estendidos e enrolados dentro de uma mala de viagem.
5. Na realidade, os desenhos na parede são flâneurs que interromperam a sua leitura das ruas e praças, entrando pela porta entreaberta.
6. Além do que possa ser a idealização, dentro da cabeça do artista, não se oblitere a força de todos os olhares surpreendidos que hão-de duvidar do que seja visto.
7. Naquelas zonas intermédias, onde os espelhos são intocáveis, existem razões alegres para desenrolar frases traduzidas em tecidos, paredes e mãos.
8. As mãos conversam com dedos desprevenidos que apenas tocam o ar. Cheios de respeito, inclinam-se quase até rentes ao soalho para louvar a intempérie criativa do mundo em pedaços.
9. Inundei de perfumes e sabores as minhas palavras habituais quando pela primeira vez li as “Tisanas” da Ana Hatherly. Achei o respeito sublime.
10. Vi as xícaras de chã de Almada negreiros n’ “Os Frisos”, esses breves e minúsculos contos de sabedoria.
11. Reconheci o paladar do globo que se encolhe (mentalmente) no inverno, fechado nas salas escritas por Josif Brodsky.
Maria De Fátima Lambert
Invisíveis
"Marlene Stamm faz uma inversão curiosa em seu trabalho que desmente - como costumam a fazer as inversões – alguns lugares-comuns do gênero apelidado, nos anos 70, de hiper-realismo. Pois vejam só : o hiper-realismo é uma volta retórica (muitas vezes duplamente conservadora, justamente por ser uma “volta” e “retórica”) ao naturalismo, ou ao suposto naturalismo clássico, por meio da imitação da tridimensionalidade dos objetos. O curioso do hiper-realismo - e justamente a sua parte avançada, dialética e progressista – é o uso da fotografia, que desde seus auspícios mostrou-se célere em achatar perspectivas, sombras, discursos e, ao final das contas, a Realidade. Pois bem, ainda assim, a fotografia (e notem que, além de um parêntese dentro do outro, estou tentando construir um paradoxo dentro do outro) foi usada para retornar, mas não somente para isso, uma espécie de domínio da pintura sobre o Real, deixando de lado a afirmação da planaridade da tela e do materialismo da arte que absorveu parte do discurso modernista até, exatamente, os anos 70.
Entretanto, esse crítico é da opinião que foi somente com a fotografia que o Real entra em cena, no sentido lacaniano de momento em que a linguagem é incapaz de chegar, de lugar onde o reino da linguagem acaba para que o Outro, o objeto outro, incapaz de ser englobado pela linguagem reina: a morte, a dor física, o microscópico, o maremoto e o furacão. Enfim, é onde termina a Cultura e começa o Mundo. Mundo que, por sua vez, nos ignora solenemente, apesar da gritaria humanista dos ecologistas. Portanto, a fotografia não veio para tirar da arte a ocupação com o Real, porque isso nunca foi assunto da arte. O assunto da arte sempre foi a linguagem, de Rafael a Frank Stella. Rafael não realizou sua hipótese de como deveria ter sido a real Ascensão de Cristo, ele realizou uma pintura que buscava sintetizar sua visão das idéias renascentistas, contemporâneas, humanistas e estéticas da Ascensão do Cristo.
Continua na próxima tela
Invisíveis
Dessa forma, o hiper-realismo de nossa artista é duplamente realista. Primeiro, porque acusa, com justeza, o hiper-realismo de retórica e naturalização do realismo. E a naturalização de uma linguagem instituída - como a democracia, por exemplo - é a arma de dominação favorita dos reacionários. Segundo, porque paradoxalmente retoma, por meio do hiper-realismo, o discurso de planaridade da pintura do modernismo, como Jasper Johns, mas em uma chave desligada do expressionismo abstrato e, portanto, mais técnica e menos histórica.
Ou seja, Stamm usa a ilusão de tridimensionalidade hiper-realista para pintar objetos bi-dimensionais ou de tridimensionalidade mínima, como buracos na parede, marcas no plano, fios e espelhos de luz. Nos buracos, a ilusão se transforma quase em uma piada. Outra inversão.
Evidentemente, como Jasper Johns, Marlene também comenta o seu tempo. Mas, ao invés do ocaso do expressionismo abstrato, a artista tem de lidar com o ocaso do cubo branco. E de suas últimas tentativas de isolamento institucional da arte.
Como era o expressionismo abstrato à época de Johns, é um cachorro agonizante. Mas não morto. Com suas tomadas, fios aparentes e buracos na parede, a artista participa, alegremente, do golpe de misericórdia em seu flanco cansado."
Rafael Campos Rocha
Mnemis: Dogma da visibilidade silenciosa
27 Aforismos
1. A memória é vadia, errando sobre camadas de vontades e receios.
2. A passagem das horas vingou-se de Fernando Pessoas.
3. A compilação dos dias de vida alonga-se em linhas espiraladas.
4. Há dias que são dias sem recuo nem avanço.
5. O contrário da pressa é o tempo alimentando-se de sopro.
6. O sopro – daimón – trabalha no intervalo que a alma dá ao corpo para o domar.
7. Existem concentrações de segundos, perdidos ou dispersos, que convergem na densidade encarnada dos tecidos.
8. O tempo queima-se enredando-se na dúvida acerca da sua existência, pois tanto se questiona a sua invisibilidade.
9. A invisibilidade sabe-se que é incorpórea ou acredita-se seja tão espessa que a mão não agarra.
10. A espessura da pele constitui-se de pensamentos acumulados, sobre os quais se esgadanha a sensibilidade excessiva e o rigor das palavras esfumadas sobre o papel.
11. A precisão do desenho quando impregnado de um teor representativo que está ao serviço do conceito enxuto é plenitude assombrosa
Continua na próxima tela